COLUNISTAS – BORDEAUX, TRADIÇÃO COM UM DOCE FUTURO

BORDEAUX, TRADIÇÃO COM UM DOCE FUTURO

Por: Walter Tommasi
walter_tommasi@yahoo.com.br

Uma semana em Bordeaux pode parecer pouco para os amantes do savoir faire, mas sem dúvida é suficiente para moldar um pouco nossa forma de encarar as coisas. O resultado disto e que decidi escrever esta matéria à la française, ou seja, no TGV entre a cidade com o seu nome e o aeroporto Charles De Gaule, já no caminho de volta ao Brasil.
Passeando pelas cidades que compõe Bordeaux me sinto transportado ao passado, tudo me parece familiar e acolhedor, as casas, as vielas, os castelos, e, claro, os intermináveis vinhedos que fazem a fama da região. Tenho a certeza absoluta de estar onde se produz alguns dos melhores vinhos do mundo, assim como de provar receitas culinárias que a história e o passar dos séculos teve o tempo de apurar. Enfim, imagina-se que nesta região não existe mais nada a ser feito, pois está muito perto ou até mesmo no auge da perfeição . Isto pode ser verdade em alguns casos específicos, mas certamente não é uma verdade absoluta, porque existe um mundo de oportunidades que a forte tradição local esconde e sufoca. Nestas duas matérias que farei tentarei transmitir e explorar este potencial fantástico que muitos produtores acreditam não existir por insistir em manter os olhos no passado.
Quero começar com um dos ícones franceses, os vinhos doces da região de Bordeaux. Claro que muitas pessoas imediatamente irão ligar o vinho doce ao Château D’Yquem, o único exemplar doce que detém a nobre denominação “Premier Cru Superior “, e pronto, temos nele uma história de sucesso com a marca sendo a referência de qualidade para todos os seus concorrentes e com seus preços atingindo níveis que às vezes o tornam impraticável para muitos de nós. Alguns mais afortunados ou estudiosos lembrarão ou terão também tomado outras marcas como o Climens, La Tour Blanche, Peyraguey, o Rabaud Promis e outros dos 12 “ Premier Cru”. Mas a partir dos “Second Cru” os nomes já se tornam menos conhecidos e seus produtores têm uma realidade comercial completamente diferente. Nesta visita à região pudemos identificar diversos estágios, começando com as empresas antiquíssimas que ainda se mantêm pela marca e tradição de seus processos de produção, outras em estágio de transformação, com uma mescla de história e tecnologia, e finalmente outras já trabalhando com alta tecnologia e posicionando seus produtos de forma mais contemporânea. Tenho certeza que daqui a alguns anos surgirão os novos gênios da vitivinicultura francesa, os novos “Bad Boys” dispostos a trocar a tradição pela alta qualidade. A Associação dos Grandes Vinhos Licorosos de Bordeaux já começou um processo de renovação com uma campanha internacional com a qual pretende mudar a sua imagem começando pelo logo, sua tipologia, cores e até o nome. – “Sweet Bordeaux” –, mas também sabemos que apenas poucos conseguirão o feito, pois renovar não é apenas mudar o nome , o apelo, ou a embalagem, e preciso manter a qualidade, estar disposto a conhecer o seu cliente final e suas preferências, e este caminho é muito longo para alguns tradicionalistas que ainda vivem das glórias passadas e usam meios antigos de distribuição.
 
Mas vamos entender um pouco mais deste maravilhoso vinho e suas expectativas para o futuro.
O denominado “Golden Wine” só é possível pelo desenvolvimento em suas uvas, da Botrytis cinerea , e a principal causa deste fungo é a alternância de umidade com calor. Seu ataque às bagas ocorre no momento de seu amadurecimento, fazendo-as secar e, com isto, diminuindo a acidez, aumentando açúcares, e definindo o seu bouquet com aromas de mel, uva- passa, flor de limoeiro, acácia, pêssego maduro, abacaxi, manga, assim como um ligeiro químico lembrando esmalte. Alguns produtores nos disseram que para produzir este vinho o grande enólogo é o catador de uvas, pois ele detém o segredo de colher as uvas certas. Na experiência de colheita que tivemos percebemos não ser algo tão fácil para um iniciante, visto as uvas maduras se confundirem com as botritizadas e com outras que secaram mas que não têm o fungo , mas estou convencido que um dia inteiro de trabalho na colheita eliminaria essa carência de discernimento. Percebemos também que, na vinificação, alguns produtores já começam a se preocupar com a tecnologia, substituindo suas tradicionais prensas que vemos na foto por equipamentos modernos e tecnologia de ponta, como a injeção de nitrogênio nos espaços anteriormente ocupados pelo oxigênio. A variedade mais utilizada para a produção deste néctar é a Semillon , mais facilmente atacada pela Botrytis e que normalmente participa no corte com 80% do volume, a seguir vem a Sauvignon Blanc com 20 %, cada vez mais utilizada para agregar acidez ao vinho, tornando-o desta forma mais adequado ao mercado atual,e finalmente a Muscadelle que pouco a pouco está perdendo seu espaço nas mesclas . A produção dos vinhos doces da região é dividida em duas classes:
1) Moelleux ( Vinho doce ), contendo de 12 a 45 gramas de açúcar por litro, e produção nas AOCs de Graves Superieures, Côtes de Bordeaux, Côtes Saint- Macaire, Sainte- Foy, e Bordeaux Superior.
2) Liquereux ( Xarope ), contendo acima de 45 gramas de açúcar por litro e produção nas AOCs de Sauternes, Barsac, Lupiac, Saint- Croix- du- Mont, Cérons ,e Cadillac.
Hoje a área dedicada a estes vinhos ocupa 4.040 hectares, correspondendo a 2 % da região de Bordeaux. Tem uma produção média anual de 112 mil hectolitros dividida entre os 530 produtores. Os vinhos doces de Bordeaux diferentemente do que muitos pensam são adequados a muitos tipos de comidas e até mesmo pode servir como um bom vinho para meditação. Vamos a algumas boas combinações:
a) Entradas: Peixes defumados, tapas, presunto cru, frutas secas, cogumelos cozidos, e queijo de cabra e, claro, com o famoso foie gras.
b) Pratos Principais: Steak tartar, pratos com especiarias fortes na linha do curry, atum, risotos mais estruturados, carnes vermelhas com molhos à base de vinho.
c) Queijos: Todos os queijos maduros, reblochon, blue, gorgonzola, roquefort, parmesão, e também com alguns de mofo branco.
d) Sobremesas: Salada de frutas vermelhas, sorbets de ameixas e pêssegos e frutas vermelhas, chocolate amargo, crème brûlée, geleia de figos, e sobremesas frias.
Importante: a temperatura de serviço deve ser de 8 a 10 graus.
Durante nossa visita tivemos a oportunidade de degustar oito exemplares, com destaque para o Château Rabaud Promis 1988, de Bommes, de propriedade do simpático produtor Philippe Dejean. Vinho dourado de alta complexidade olfativa e uma elegância de boca digna dos grandes nomes da região, onde ele participa como um premier cru. Outro ótimo vinho foi o Myrat 1997, um tradicionalíssimo vinho de Barsac classificado como second cru. E, finalmente, o Château Broustet 2005, hoje dirigido por Guillaume Forcade, da sexta geração da tradicional casa, que hoje se foca na inovação para tornar seu produto melhor e ainda mais conhecido.
A competição no mercado de vinhos doces no mundo é cada vez maior, e os grandes competidores dos Bordeaux são os late harvest produzidos pelas vinícolas do Novo Mundo, que ganharam muito espaço nos últimos anos com sua alta qualidade e excelente custo- benefício, mas tenho impressão que o gigante adormecido acordou e em breve marcará a sua presença com novos vinhos gerados em berço de ouro pela fusão da tradição com a tecnologia.
Le temps nous dira!

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